MARÉ DE INDIGNAÇÃO: ENQUANTO ALGUNS DESPERTAM, OUTROS SEGUEM ADORMECIDOS.

by Fernando Alberto Garcia on Tuesday, May 31, 2011 at 9:30am

É quase impossível não advertir um fio condutor que liga a série de eventos que foram detonados em Janeiro deste ano em Tunez, e que logo se foram replicando no Egipto, Jordânia, Marrocos, Yemen, Bahrein, Sudão, Oman, Kuwait, Líbia e Síria. Mais tarde adveio Espanha (emm Madrid, Barcelona, Sevilla, Valência, Logrono, Santiago de Compostela, Toledo, Bilbao e outras), e se extendeu ao resto da Europa, como sucedeu em muitas cidades da França, Grécia, Alemanha, Portugal, República Checa, Hungria, Polónia e Austria. Isto foi pre-anunciado em alguma medida, e entre outros, pelo caso exemplar da Islândia em 2008, os protestos massivos ante o G-20 em 2009, e as greves e mobilizações sindicais em toda a Europa em 2010. E o de hoje, a sua vez, preanuncia muito mais por vir.

Cada um destes casos tem características específicas próprias da história e situação actual de cada país nos quais tem lugar, mas todos eles têm o inequívoco sabor dum descontentamento generalizado que passou a ser rebelião indignada frente ao estado das coisas. Desta vez é difícil para os defensores do status quo desestimar e desqualificar estes feitos, atribuíndo-os a obscuras manobras de minorias, à acção encoberta de governos forâneos ou ao terrorismo internacional.

Se bem que as bandeiras das exigências que se agitam podem variar, todas elas destilam um profundo fastídio pela imobilidade dum sistema obsoleto ante a velocidade das mudanças mundiais, por um letargo auto-destrutivo que não atina a conceber – e muito menos a implementar – as mudanças profundas que são necessárias para afrontar os desafios do novo mundo. E não atina porque todavia se insiste nesciamente com as receitas de antão, acreditando que basta a alternância da condução social com as opções desgastadas de sempre, acreditando que um político mais ou menos mediático bastará para aplacar o clamor por algo realmente novo, acreditando que a manipulação dos indicadores macro-enconómicos soluciona tudo. Parece que não bastam os exemplos patentes que abundam em todas as regiões para terminar de convencer que os modelos actuais já não funcionam.

As bandeiras das exigências populares que se agitam nestes dias são fruto do consenso mínimo duma ampla diversidade de reclamações ignoradas em todos os campos, não apenas no político e económico, mas também no social, no cultural, no institucional, no ecológico e outros. Ou seja, as consignas que lemos nos cartazes são apenas a proverbial ponta do icebergue dum descontentamento massivo com o estado actual das nossas sociedades. Exigir mais significaria reduzir o poder de convocação. É um descontentamento transversal que une gerações, sectores de renda, credos, regionalismos, nacionalidades, e uma ampla gama de posturas em quanto a propostas de mudança. Talvez o descontentamento não seja apenas pela frustração que geram as expectativas não cumpridas do bem-estar e consumo, senão também pela maneira de viver desumanizante: mesmo para a minoria que consegue satisfazê-las.

Mas as rebeliões de hoje se explicam tanto pelo presente que se padece como pelo futuro a que se aspira. Assim, oxalá que estas rebeliões não se detenham, e que caminhem mais além da vistosidade mediática das manifestações de praça pública, encontrando outros campos e modos de acção. Oxalá que ampliem e profundizem a sua proposta de mudança mais além das bandeiras que hoje agitam. Oxalá que conservem o seu carácter não-violento, não-discriminatório, transversal, participativo e descentralizado. Oxalá que estas rebeliões não se entendam a si mesmas simplesmente como locais ou como reivindicações de parte, senão como a expressão multi-focal dum modo de pensar e sentir mundializado, duma sensibilidade nascente que corresponde a um futuro querido.

É de esperar também que a esta onda mundial de rebelião frente ao estabelecido, e a esta aspiração por um mundo melhor, se somem uma rebelião e uma aspiração similares pelo melhoramento como seres humanos, mas além de ser simplesmente consumidores exigentes frustrados pelas expectativas ilusórias. Porque seria uma meia-verdade e um novo sonho atribuir toda a responsabilidade do estado das coisas apenas aos políticos e aos banqueiros, quando convenientemente se descarregou sobre eles a gestão da coisa pública e, por ende, o controle das nossas vidas. Porque as promessas não cumpridas e as estafas de todo o tipo não são coisas dos últimos anos, senão duma larga data.

Que seja uma rebelião guiada por necessidades vitais essenciais, e não pelo desejo desmedido não sustentável nem solidário. Entre as necessidades vitais essenciais seguramente se contará a de dar as nossas vidas um sentido profundo e transcendente, livre do sem-sentido de colocar o dinheiro como valor central da vida pessoal e social.

Em todo caso, a rebelião ante o mundo que se rejeita e a construção do mundo que se aspira não podem ser “sub-contratados”: requerem compromissos activos de cada um de nós, antes e depois do acto eleitoral. Oxalá que isto já se compreenda, e que os que hoje encabeçam o protesto não encomendem uma vez mais aos políticos profissionais que lhes solucionem as coisas, senão que eles mesmos tomem nas suas mãos a construção dum grande movimento que leve esta nova sensibilidade aos lugares de decisão que correspondam. Talvez por razões similares Stéphane Hassel escreveu: “Comprometam-se!” depois de “Indignem-se!”.

Em términos de compromisso activo, ainda restam forças por adicionar o seu apoio ao protesto. Estas forças são variadas e não apenas políticas, mas também sociais, culturais, religiosas, etc. É estranho advertir que anda não tenham manifestado o seu apoio público e decidido a favor do que está a acontecer. A que se deve este silêncio? Talvez porque não possam ser protagonistas ou monopolizar o que sucede? Talvez porque não se originou na sua própria organização ou lugar? Acreditam por acaso que estão a salvo do que se denunciam em outros lugares? Acreditam poder controlar a sua “ilha feliz” prescindindo do sistema global em que se encontram imersos? Ou por acaso estão tão absorvidos nos seus próprios interesses e cenários locais que se lhes impede advertir que o que se expressa na Europa e África é o clamor de todos?

Ainda alguns que ideologicamente se declaram globais ou internacionalistas parecem insensíveis ante a urgência de replicar e aumentar o protesto – e sobre tudo a proposta - em todos os lugares e foros. Em particular, os partidinhos e os seus mesquinhos políticos ainda pensam em términos localistas, seguem alimentando o jogo da democracia formal da repartição de cargos, previlégios e regalias, enquanto continua o saque dos povos a mãos dos dependentes do capital financeiro especulador.

Se vai afundando este sistema não-reformável, condenado irremediavelmente à sua superação. Será o caso de seguir acreditando ainda no gradualismo reformista quando o barco infiltra águas por todos os lados e arrastra a todos no seu naufrágio? Será o caso de seguir apoiando o jogo da democracia formal, cegamente nacionalista e classista, ou bem apostar na mudança global e real que hoje se vislumbra como possibilidade nas praças do mundo?

Porque não importa tanto o que esta rebelião é hoje como o que poderia chegar a ser amanhã.

fernando120750@gmail.com



No hay comentarios:

Publicar un comentario